quarta-feira, 23 de julho de 2014

SOBRE O AMOR E A TRAIÇÃO (por Cristiano Pimenta)




“Eu só me apaixonei verdadeiramente por uma única pessoa, foi no ano passado... Rompemos. Doeu e ainda dói, não pela pessoa em si, mas pelo ideal que eu construí dela... Sabe aquela sensação de que ‘Nossa, eu encontrei o que queria!’? Pois bem, a realidade não alcançou as minhas expectativas, não por culpa dele, coitado, ele não tem culpa, ninguém nasceu para suprir as expectativas dos outros...”

A autora do trecho que acabamos de ler é uma jovem mulher que expressa sua dolorosa verdade: ela constata que o relacionamento no qual ela projetou seu desejo de amor mais profundo, aquele que a levou a dizer para si mesma “Nossa, eu encontrei o que queria!” – naufragou nas águas traiçoeiras do engano. É provável que ela, a autora, tenha saído emocionalmente prejudicada dessa experiência, já que afirma também que se vê “receosa e com medo de me machucar novamente”.

Mas quem não fracassou no amor? O que ela diz poderia ter sido dito por qualquer um de nós em determinado momento de nossas vidas. Se o assunto diz respeito a todos nós, ele merece alguns comentários.

Gostaria de partir da ideia de que o amor, no sentido de uma relação amorosa, realiza sempre um pacto (explícito ou implícito) entre duas pessoas. Não há amor sem pacto. Isso significa que uma simples relação sexual por si só, não faz um pacto de amor. É preciso que haja, de maneira velada ou expressa, uma frase do tipo: De agora em diante, você será minha mulher. Essa é uma frase típica que funda, por ex., um casamento. Mas qual seria a frase que funda uma relação amorosa? A mais simples de todas: eu te amo.

E o que é amar? Na melhor definição que conheço, a definição lacaniana, amar é dar o que não se tem. Eu amo alguém quando faço um ato que sacrifica algo do meu ser, algo que dou ao outro mas que, de fato, eu não tinha condições de dar. Alguns exemplos: se sou pobre e dou à pessoa amada um presente caro, ela sentirá que a coisa é séria; se sou rico e não pretendo comprá-la com o dinheiro que tenho em excesso, ela ficará intrigada e poderá se perguntar: o que esse homem rico viu em mim? Se o homem for regularmente infiel, um “pegador”, mas por tal mulher ele sacrificar seu gozo, algo importante existe com essa mulher.

Enfim, amar supõe uma atitude: a de dar o que quer que seja, contando que não se tenha isso que é dado. Quando se dá o que se tem o ato não funciona como uma verdadeira prova de amor. Se sou rico e te dou algo que meu dinheiro pode facilmente comprar, isso não te dará a certeza de meu amor. Uma mulher poderá se sentir mais amada se, nesse caso, receber flores.

Se dizer “eu te amo” funda o pacto de amor, e se amar é dar o que não se tem, consequentemente não se diz “eu te amo” impunemente! Dizer “eu te amo” é um comprometimento que funda todo um campo de possibilidades, pois é um pacto em dar o que não se tem para dar. Não é preciso ser muito experto para saber que deve-se ter muita prudência com essa pequena frase eu te amo, pois as consequências ao dizê-la podem ser, em certos casos, devastadoras.

Uma vez feito o pacto de amor entra em cena o tema da fidelidade e da traição. Ou seja, a questão passa a ser sempre se iremos trair ou não o pacto feito; ou se, por outro lado, seremos traídos. A traição, nesse sentido que aqui a descrevo, é sempre a sombra negra que perscruta o amor, é sua ameaça velada, mas sempre presente. Mas trair, no sentido que aqui considero, não é simplesmente “ficar” com outra pessoa, é muito mais que isso, é qualquer coisa que faço que me leva a não realizar o pacto de amor, ou seja, a não dar, na ocasião em que sou convocado, o que eu não tenho.

Assim, se a possibilidade de trair está presente quando estou amando, nos vemos confrontados também com uma questão propriamente ética, a ética do desejo: eu desejo sustentar o meu amor? Eu desejo não trair o pacto de amor que fiz? Se a resposta é sim, então, ao trair a pessoa que amo (não dando a ela o que não tenho) eu traio, na verdade, a mim mesmo. Como diz Lacan, eu cedo de meu desejo. A questão ética presente no amor, portanto, é a de ceder (ou não) de seu desejo.
Mas, e se não fui eu quem traiu o pacto de amor, mas sim meu parceiro ou minha parceira? A resposta pode ser extraída de uma passagem de um Seminário de Lacan sobre a ética da psicanálise, no momento em que ele aborda a ética do desejo:

“O que chamo ceder de seu desejo acompanha-se sempre no destino do sujeito de alguma traição. Ou o sujeito trai sua própria via, se trai a si mesmo, ou mais simplesmente, tolera que alguém (com quem ele se dedicou a alguma coisa) tenha traído sua expectativa, não tenha feito com respeito a ele o que o pacto comportava, qualquer que seja o pacto, fausto ou nefasto, precário, de pouco alcance, ou até mesmo de revolta, ou mesmo de fuga, pouco importa. Algo se desenrola em torno da traição quando se a tolera, quando, impelido pela ideia do bem – quero dizer, do bem do traidor – se cede a ponto de diminuir suas próprias pretensões, e dizer-se – pois bem, já que é assim, renunciemos à nossa perspectiva, entremos na via costumeira. Aqui, vocês podem estar certos de que se reencontra a estrutura que se chama ceder de seu desejo”.

Ora, essa passagem do texto lacaniano parece ter sido feita sob medida para a autora do breve texto que nos propusemos a comentar. Em ambos encontramos a mesma palavra chave: expectativa.

A autora diz que “a realidade não alcançou minhas expectativas”, ou seja, a pessoa real não correspondeu ao que ela esperou dele. Se supusermos que em algum momento eles fizeram o pacto de amor, de forma implícita ou explícita, então teremos que concluir que ela foi traída. Pois, se houve o pacto, houve a geração das expectativas e a traição é, fundamentalmente, uma traição da expectativa gerada.

Mas a jovem mulher não quer ver aí uma traição de seu parceiro. Ela quer poupá-lo de toda culpa (ele não tem culpa, diz ela), ou seja, ela quer o seu bem. Afinal, sempre tendemos a querer o bem daquele a quem consideramos um “coitado”. Por isso mesmo, ela assume uma posição que visa desresponsabiliza-lo de algo em que ele participou efetivamente: a produção da expectativa dela, por mais ilusória que essa seja.

Em outras palavras, ela quer excluí-lo do pacto de amor e assumir sozinha toda a responsabilidade. Ela constata que, de fato, ele não tinha para dar aquilo que ela buscava nele, o que quer que seja: um casamento, um filho, ou mais dedicação ao relacionamento, pouco importa. Todavia, ela não vê que era nesse exato ponto que ele poderia tê-la amado, ou seja, dando a ela exatamente o que ele não tem para dar.

Assim, ao salvar seu parceiro de toda culpa, ela cede de seu desejo, ela trai a sua via, se trai a si mesma, já que ela tolera a traição daquele com quem firmou um pacto. Dessa vez é ela que não faz o que eticamente foi convocada a fazer: ela não rompe (no nível emocional) o pacto, ela continua dando o que não tem, ela continua amando. É por isso que não encontramos no trecho citado nada que se pareça com uma fúria. Na verdade, ela poupa seu parceiro dela mesma, da fúria tipicamente feminina que naturalmente a tomaria por suas expectativas mais íntimas terem sido frustradas. Isso que ela faz, vale dizer, é aquilo que todos nós fazemos ou já fizemos quando amamos.

E qual é o preço que comumente pagamos nessas situações? É o de deixar a nossa vida amorosa paralisada numa espécie de zona neutra, justamente aquela em que se teme ter expectativas no amor. Por detrás desse temor, na verdade, há uma voz superegóica a nos martelar a mente: Viu no que deu essa história de querer ser feliz? Você foi ter expectativas no amor e se ferrou!! Portanto, entre na via costumeira, evite o amor, será melhor para você!

Para terminar, eu diria que os verdadeiros homens sabem tolerar a fúria de uma mulher quando ele não correspondeu às expectativas que ele mesmo gerou nela. Ele sabe que tem responsabilidade nisso e que, portanto, ela tem suas razões para estar furiosa. Assim, se, por motivos quaisquer, justos ou injustos, ele vier a seguir seu caminho deixando a mulher que o ama, ele jamais poderá se eximir da responsabilidade por essa escolha.

O mal maior não está em trair um pacto. Aliás, não há nada pior do que sustentar um pacto de amor por mera obrigação. O mal está em trair seu próprio desejo. A responsabilidade com o próprio desejo deve ser, no meu entendimento, a maior de todas.

Cristiano Pimenta


quarta-feira, 16 de julho de 2014

O DESEJO NO MUNDO DOS ADULTOS (por Cristiano Pimenta)




Se há uma coisa facilmente perceptível na maioria das crianças é a imediatez, a urgência, do desejo. Se dissermos a uma criança que hoje iremos fazer uma coisa que ela gosta muito (ir a um parque ou à casa de um amiguinho querido), a reação dela certamente será: Vamos agora! Por isso, é uma crueldade nossa dizer que o presente que ela acaba de ganhar só poderá ser aberto amanhã.

Nós adultos tendemos a perder essa espontaneidade do desejo. Somos mestres do adiamento, das interpolações, de colocar obstáculos ao desejo. E isso é em nós uma doença ruim. O neurótico obsessivo é o mestre maior da procrastinação ao ponto de fazer da realização do desejo um impossível. Ele sabe colocar o desejo em compartimentos bem organizados espacial e temporalmente. O sujeito histérico tem o seu modo peculiar de desejar: que o desejo permaneça sempre na insatisfação! Uma histérica decidida saberá deixar seu parceiro enlouquecido de desejo por ela, mas saberá também sumir da cena quando chegar a hora exata dos “finalmentes”. Ela saberá, igualmente, preencher seus dias com tarefas absolutamente importantes e necessárias, de modo que não reste quase nenhum tempo a ser dedicado ao seu parceiro amoroso. Assim, nas relações amorosas ambos serão, sabotadores do desejo. Cada um a seu modo estará sempre dizendo: “Hoje não, deixemos para depois, para amanhã, depois de amanhã será melhor ainda, semana que vem...”.

É aí que as razões, os motivos para esses adiamentos serão valorizados ao extremo: “Eu não pude vir ao nosso encontro porque tinha uma coisa muito importante para fazer”. Ou seja, trata-se aqui de um mecanismo inconsciente de desvalorização do desejo: outra coisa sempre será mais importante que a realização do meu próprio desejo. Temos aqui o contrário, portanto, do funcionamento do desejo na criança, que é sempre fundado na urgência.

E se um de nós adultos (sim, pois as crianças sadias não precisam disso) fizer uma análise e recuperar sua capacidade de dar prioridade ao desejo terá, então, que enfrentar as tentativas de sabotagem dos demais adultos. Uma delas se manifesta assim: “Se você quer realizar urgentemente seu desejo eu te desvalorizo”. É preciso, portanto, fazer de conta que não estou desejando, que não estou nem aí para o outro, assim ele poderá me valorizar. Portanto, se você apresentar seu desejo tal como ele realmente é, a saber, em estado de urgência, você vai se dar mal no mundo dos adultos. Se você fosse uma criança seria tolerado porque no fundo não seria levado a sério.

Isso, é claro, tem uma explicação: a realização do desejo para um adulto não analisado ou que não preservou em si a criança que ele foi, é algo profundamente angustiante. A realização do desejo sempre lhe aparece como sendo da ordem de um delito que o fará sentir-se culpado. E é incrível que esse mecanismo ainda subsista na época em que vivemos, a época em que o gozo é não apenas liberado, mas obrigatório.

Era natal. Família reunida. Eu havia comprado presentes para os meus sobrinhos. Um deles me era, e ainda é, muito querido e por isso mesmo eu havia lhe dito, mais cedo, que comprara um presente especial. Ou seja, eu já o havia colocado à espera de um objeto misterioso do desejo. Chegada a hora de entregar os presentes eu fiz uma coisa da qual hoje não me orgulho de modo algum: eu o deixei por último, fui dando os presentes para todos os outros sobrinhos. E fiz isso com um toque a mais de crueldade: a cada vez que eu pegava um presente eu o olhava como se esse fosse o dele, mas o dele foi o último. Crueldade de adulto a minha. Dessas que fazemos sem perceber que fazemos. Ele ficou feliz quando finalmente recebeu e abriu o pacote. Eu, todavia, senti um certo incômodo que só hoje interpreto de uma forma que convence a mim mesmo: eu coloquei em prática isso que eu denuncio no texto acima, um espécie sadismo com o adiamento do desejo. Mas vale relatar aqui algo que eu observei no comportamento dele durante o tempo em que ele esperava. No fundo - hoje isso me é muito claro - ele não esperava. Ele arranjava outra coisa para fazer, outro brinquedo, convocava um primo para um jogo qualquer. Eu é que o interrompia com a promessa que seria o momento de receber o presente tão falado. Hoje, com muita dificuldade, estabeleço esse comportamento dele como uma referência para mim. Não gosto, não posso, não devo, simplesmente ficar esperando pela realização dos meus desejos. Isso é algo muito difícil para um adulto. O adulto tende a ser fixado em um único objeto, o qual assume o caráter de ser insubstituível. A criança não. Basta lhe dizer “Vamos brincar de outra coisa?” que ela tenderá a dizer sim com um sorriso no rosto. O adulto, na maioria das vezes, só sabe brincar da mesma coisa e quase sempre, sem um sorriso no rosto.


Cristiano Pimenta

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O impronunciável do corpo na experiência analítica


por Cristiano Pimenta

Um dos traços relevantes que podemos observar na clínica hoje é que muitos analisandos se defrontam –já no momento em que a análise se inicia ou em momento posterior– com um real que não cede aos efeitos de significação. Ou seja, esse confronto não está confinado ao final de análise. E o que prevalece nesses momentos é a existência de uma inércia que mantém o falasser apartado daquilo que constitui o fundamento mesmo do laço com o analista, a saber, o efeito de sujeito-suposto-saber. Assim, o tratamento, pelo menos durante certo período, não se assenta na associação livre e em seus efeitos de significação. O analista se vê, pois, desconcertado diante da impossibilidade de produzir, por exemplo, uma entrada em análise nos moldes clássicos, se vê igualmente embaraçado pela ausência da dialética significante, com toda a mobilidade de suas posições, que acarreta o que Miller realçou com o termo lacaniano "varidade" [1]. Poderíamos ir ao extremo de dizer que assistimos a uma espécie de suspensão do discurso, posto que todo discurso reserva um lugar para os efeitos de verdade. Sendo assim, uma pergunta se faz pertinente: dado que não há a instalação do sujeito suposto saber, ou que ocorre uma espécie de suspensão temporária do mesmo, o que leva alguém submetido a tal inércia a retornar ao analista? Sim, pois impressiona o fato de certos pacientes perseverarem assiduamente durante esse hiato temporal que suspende todo e qualquer enigma.
E o que há aí nesse espaço de inércia? Há –eis como lemos a questão– aquilo que Miller desenvolveu em seu Seminário O ser e o Um [2], a saber, "o gozo do Um sozinho, ou seja, o gozo que coloca em primeiro plano os acontecimentos do corpo": angústia, depressão, enlouquecimento, aflições que parecem atingir um ponto além do suportável.
Em outros termos, nesse hiato temporal em que o simbólico sucumbe o que emerge é o impronunciável do corpo. E como tratá-lo senão por vias que lhe são afins? Ou seja, nesse nível mais além, ou mais aquém, da articulação significante uma análise deve ser "o tratamento do real pelo real" [3], para usar uma expressão citada por Rômulo Ferreira da Silva no X Congresso de Membros EBP. Assim, as intervenções do analista são peças soltas, funcionam como Um sozinho, sendo afins, portanto, com a estrutura mesma do sinthoma. Eis o que permite ao falasser retornar à sessão: só ali o impronunciável de seu corpo pode ser ouvido. O analista é o único que, sabendo da ineficácia dos efeitos de significação para o tratamento do real, não cede à oferta pseudo-apaziguadora do discurso da ciência e do discurso capitalista, que se conjugam, por exemplo, na indústria dos medicamentos. O analista é o único que propõe um saber fazer com o corpo, para que o falasser possa realizar uma nova aliança com ele [4]. O tratamento do real pelo real supõe, igualmente, uma outra forma de se pensar o vínculo paciente-analista, mais além do vínculo transferencial. Trata-se antes de uma amarração pela via do nó borromeano, que preserva a separação, o caráter de Um sozinho, daquilo mesmo que se amarra, e por isso não produz efeitos de sentido, não produz nenhuma verdade.

Miller, J.-A., Perspectivas do Seminário 23 de Lacan, o sinthoma, Rio de Janeiro: Zahar 2009, p. 26.
Miller, J.-A., L'Etre et l'Un (2011-2012), aula 8, inédito.
Silva, R. F. da, "O que é o real?", Um por Um, boletim eletrônico do Conselho da EBP, n° 159, 2013.
Miller, J.-A., Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan, entre desejo e gozo, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 183.

*Texto publicado na http://www.enapol.com