“Eu
só me apaixonei verdadeiramente por uma única pessoa, foi no ano passado... Rompemos.
Doeu e ainda dói, não pela pessoa em si, mas pelo ideal que eu construí dela...
Sabe aquela sensação de que ‘Nossa, eu encontrei o que queria!’? Pois bem, a
realidade não alcançou as minhas expectativas, não por culpa dele, coitado, ele
não tem culpa, ninguém nasceu para suprir as expectativas dos outros...”
A autora do trecho que acabamos de ler
é uma jovem mulher que expressa sua dolorosa verdade: ela constata que o
relacionamento no qual ela projetou seu desejo de amor mais profundo, aquele
que a levou a dizer para si mesma “Nossa,
eu encontrei o que queria!” – naufragou nas águas traiçoeiras do engano. É
provável que ela, a autora, tenha saído emocionalmente prejudicada dessa
experiência, já que afirma também que se vê “receosa
e com medo de me machucar novamente”.
Mas quem não fracassou no amor? O que ela diz poderia ter sido dito por qualquer um de nós em determinado momento de nossas vidas. Se o
assunto diz respeito a todos nós, ele merece alguns comentários.
Gostaria de partir da ideia de que o
amor, no sentido de uma relação amorosa, realiza sempre um pacto (explícito ou
implícito) entre duas pessoas. Não há amor sem pacto. Isso significa que uma
simples relação sexual por si só, não faz um pacto de amor. É preciso que haja,
de maneira velada ou expressa, uma frase do tipo: De agora em diante, você será minha mulher. Essa é uma frase típica
que funda, por ex., um casamento. Mas qual seria a frase que funda uma relação
amorosa? A mais simples de todas: eu te
amo.
E o que é amar? Na melhor definição que
conheço, a definição lacaniana, amar é
dar o que não se tem. Eu amo alguém quando faço um ato que sacrifica algo
do meu ser, algo que dou ao outro mas que, de fato, eu não tinha condições de
dar. Alguns exemplos: se sou pobre e dou à pessoa amada um presente caro, ela
sentirá que a coisa é séria; se sou rico e não pretendo comprá-la com o dinheiro
que tenho em excesso, ela ficará intrigada e poderá se perguntar: o que esse
homem rico viu em mim? Se o homem for regularmente infiel, um “pegador”, mas
por tal mulher ele sacrificar seu gozo, algo importante existe com essa mulher.
Enfim, amar supõe uma atitude: a de dar
o que quer que seja, contando que não se tenha isso que é dado. Quando se dá o
que se tem o ato não funciona como uma verdadeira prova de amor. Se sou rico e
te dou algo que meu dinheiro pode facilmente comprar, isso não te dará a certeza
de meu amor. Uma mulher poderá se sentir mais amada se, nesse caso, receber
flores.
Se dizer “eu te amo” funda o pacto de
amor, e se amar é dar o que não se tem, consequentemente não se diz “eu te amo”
impunemente! Dizer “eu te amo” é um comprometimento que funda todo um campo de
possibilidades, pois é um pacto em dar o que não se tem para dar. Não é preciso
ser muito experto para saber que deve-se ter muita prudência com essa pequena frase
eu te amo, pois as consequências ao
dizê-la podem ser, em certos casos, devastadoras.
Uma vez feito o pacto de amor entra em
cena o tema da fidelidade e da traição. Ou seja, a questão passa a ser sempre
se iremos trair ou não o pacto feito; ou se, por outro lado, seremos traídos. A
traição, nesse sentido que aqui a descrevo, é sempre a sombra negra que
perscruta o amor, é sua ameaça velada, mas sempre presente. Mas trair, no
sentido que aqui considero, não é simplesmente “ficar” com outra pessoa, é
muito mais que isso, é qualquer coisa que faço que me leva a não realizar o
pacto de amor, ou seja, a não dar, na ocasião em que sou convocado, o que eu
não tenho.
Assim, se a possibilidade de trair está
presente quando estou amando, nos vemos confrontados também com uma questão
propriamente ética, a ética do desejo: eu desejo sustentar o meu amor? Eu
desejo não trair o pacto de amor que fiz? Se a resposta é sim, então, ao trair
a pessoa que amo (não dando a ela o que não tenho) eu traio, na verdade, a mim
mesmo. Como diz Lacan, eu cedo de meu desejo. A questão ética presente no amor,
portanto, é a de ceder (ou não) de seu
desejo.
Mas, e se não fui eu quem traiu o pacto
de amor, mas sim meu parceiro ou minha parceira? A resposta pode ser extraída
de uma passagem de um Seminário de Lacan sobre a ética da psicanálise, no momento
em que ele aborda a ética do desejo:
“O
que chamo ceder de seu desejo
acompanha-se sempre no destino do sujeito de alguma traição. Ou o sujeito trai
sua própria via, se trai a si mesmo, ou mais simplesmente, tolera que alguém (com
quem ele se dedicou a alguma coisa) tenha traído
sua expectativa, não tenha feito com respeito a ele o que o pacto
comportava, qualquer que seja o pacto, fausto ou nefasto, precário, de pouco
alcance, ou até mesmo de revolta, ou mesmo de fuga, pouco importa. Algo se
desenrola em torno da traição quando se a tolera, quando, impelido pela ideia
do bem – quero dizer, do bem do traidor – se cede a ponto de diminuir suas
próprias pretensões, e dizer-se – pois bem, já que é assim, renunciemos à nossa
perspectiva, entremos na via costumeira. Aqui, vocês podem estar certos de que
se reencontra a estrutura que se chama ceder
de seu desejo”.
Ora, essa passagem do texto lacaniano
parece ter sido feita sob medida para a autora do breve texto que nos propusemos
a comentar. Em ambos encontramos a mesma palavra chave: expectativa.
A autora diz que “a realidade não alcançou minhas expectativas”, ou seja, a pessoa real não correspondeu ao que ela
esperou dele. Se supusermos que em algum momento eles fizeram o pacto de amor,
de forma implícita ou explícita, então teremos que concluir que ela foi traída.
Pois, se houve o pacto, houve a geração das expectativas e a traição é,
fundamentalmente, uma traição da expectativa gerada.
Mas a jovem mulher não quer ver aí uma
traição de seu parceiro. Ela quer poupá-lo de toda culpa (ele não tem culpa, diz ela), ou seja, ela quer o seu bem. Afinal,
sempre tendemos a querer o bem daquele a quem consideramos um “coitado”. Por isso mesmo, ela assume uma
posição que visa desresponsabiliza-lo de algo em que ele participou
efetivamente: a produção da expectativa dela, por mais ilusória que essa seja.
Em outras palavras, ela quer excluí-lo
do pacto de amor e assumir sozinha toda a responsabilidade. Ela constata que,
de fato, ele não tinha para dar aquilo que ela buscava nele, o que quer que
seja: um casamento, um filho, ou mais dedicação ao relacionamento, pouco
importa. Todavia, ela não vê que era nesse exato ponto que ele poderia tê-la
amado, ou seja, dando a ela exatamente o que ele não tem para dar.
Assim, ao salvar seu parceiro de toda
culpa, ela cede de seu desejo, ela trai a
sua via, se trai a si mesma, já que ela tolera a traição daquele com quem
firmou um pacto. Dessa vez é ela que não faz o que eticamente foi convocada a fazer:
ela não rompe (no nível emocional) o pacto, ela continua dando o que não tem,
ela continua amando. É por isso que não encontramos no trecho citado nada que
se pareça com uma fúria. Na verdade,
ela poupa seu parceiro dela mesma, da fúria tipicamente feminina que naturalmente a tomaria por suas
expectativas mais íntimas terem sido frustradas. Isso que ela faz, vale dizer, é aquilo que todos nós fazemos ou já fizemos quando amamos.
E qual é o preço que comumente pagamos nessas situações? É o de deixar a nossa vida amorosa paralisada numa espécie de zona
neutra, justamente aquela em que se teme ter expectativas no amor. Por
detrás desse temor, na verdade, há uma voz superegóica a nos martelar a mente: Viu no que deu essa história de querer ser feliz?
Você foi ter expectativas no amor e se ferrou!! Portanto, entre na via
costumeira, evite o amor, será melhor para você!
Para terminar, eu diria que os
verdadeiros homens sabem tolerar a fúria de uma mulher quando ele não correspondeu às expectativas que ele mesmo gerou nela.
Ele sabe que tem responsabilidade nisso e que, portanto, ela tem suas razões
para estar furiosa. Assim, se, por motivos quaisquer, justos ou injustos, ele vier
a seguir seu caminho deixando a mulher que o ama, ele jamais poderá se eximir
da responsabilidade por essa escolha.
O mal maior não está em trair um pacto.
Aliás, não há nada pior do que sustentar um pacto de amor por mera obrigação. O
mal está em trair seu próprio desejo. A responsabilidade com o próprio desejo
deve ser, no meu entendimento, a maior de todas.
Cristiano Pimenta
Fantástico Cristiano...
ResponderExcluirPrezado Professor! Que honra poder ler seu blog... Eu lia esse texto meio que numa expectativa de ter esclarecimentos, contudo, passei a navegar num riacho de dúvidas! Abraço
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